Charles Darwin e as aves com “crise de identidade”

Banhados da planície costeira no extremo sul do RS, na fronteira com o Uruguai. Foto: João Gava Just.

Por João Paulo Gava Just

Charles Robert Darwin foi uma das mais célebres personalidades que já viveram em nosso planeta. Este naturalista britânico popularizou os conceitos de evolução biológica e publicou em 1859 uma das obras mais conhecidas e citadas até hoje em dia, seu livro “A Origem das Espécies”. Mas o que a maioria das pessoas não sabe é que antes de lançar o estudo que causaria um verdadeiro reboliço na história da humanidade, Darwin fez uma longa viagem de cinco anos (1832-1836) ao redor da América do Sul a bordo de um navio chamado “H.M.S. Beagle”.

Para entendermos a “crise” apresentada no título desse ensaio precisamos viajar com Darwin e retornar até junho de 1833, para uma região do litoral do Uruguai onde hoje fica situada a província de Maldonado. O objetivo principal da expedição do H.M.S. Beagle era mapear a geologia de algumas bacias hidrográficas da América do Sul, mas Darwin se aproveitava para estudar as espécies que encontrava nessas andanças. Durante sua rápida estadia no Uruguai, por exemplo, Darwin explorou as planícies úmidas desse país fronteiriço ao Rio Grande do Sul e se deparou com pequenas aves de coloração marrom que habitavam banhados de juncais, palhas-cortadeiras e gravatás. Intrigado e a fim de entender melhor a identidade dessas aves, Darwin sacrificou e preservou alguns espécimes para mais tarde enviá-los a especialistas na Europa.

Ao retornar de viagem alguns anos depois, Darwin participou de uma reunião da Sociedade Geológica de Londres em 1837 e entregou as aves coletadas na América do Sul para John Gould, um outro naturalista britânico e exímio ornitólogo que descreveu novas espécies de aves de várias partes do mundo. Após se debruçar e estudar os espécimes daquelas aves amarronzadas vindas do Uruguai, em 1839, Gould chegou à conclusão de que Darwin encontrou não uma, mas duas espécies novas de aves. Gould então nomeou e apresentou ao mundo as espécies Limnornis curvirostris e Limnornis rectirostris, ambas pertencentes à família Furnariidae, um grupo de aves pequenas e geralmente amarronzadas parentes do popular joão-de-barro (Furnarius rufus).

Na época de Gould, nada se sabia sobre elas. Ele achou as aves tão semelhantes em aparência que as considerou como “espécies irmãs”, usando um mesmo gênero (Limnornis) para as duas. Essa decisão de Gould influenciou por muito tempo outros pesquisadores no exterior e durante muito tempo permaneceu inquestionada. Isso chegou a ditar até mesmo o modo como chamávamos popularmente essas espécies de aves aqui no Brasil: por 40 anos (1970-2010) uma delas foi chamada de “junqueiro-de-bico-curvo” e a outra “junqueiro-de-bico-reto”, traduções literais de seus nomes em inglês (“Curve-billed Reedhaunter” e “Straight-billed Reedhaunter”). A essa altura da conversa, já identificaram quais são as aves tratadas nesse ensaio?

Apenas a partir dos anos 2000 é que resolvemos melhor a identidade dessas aves. Em 2005, um time internacional de pesquisadores da América do Norte e da Europa contestou as ideias de Gould e resolveu estudar a fundo o parentesco entre elas usando tecnologias de DNA e observações de campo sobre o hábito das aves. Em resumo, após 166 anos descobriu-se que o junqueiro-de-bico-curvo e o junqueiro-de-bico-reto não são “espécies irmãs” como foi dito por séculos. Na verdade, o de bico-curvo é muito mais aparentando ao bate-bico (Phleocryptes melanops), enquanto o de bico-reto é “espécie irmã” do arredio-de-papo-manchado (Limnoctites sulphuripherus). Para fechar essa discussão secular, em 2010 um grupo de ornitólogos gaúchos baseados nesse estudo de 2005 e em observações pessoais, sugeriu uma justa troca dos nomes populares. Assim, os nomes “junqueiro-de-bico-curvo” e “junqueiro-de-bico-reto” foram excluídos das listas oficiais de aves do Brasil, dando lugar, finalmente, aos nossos famosos “joão-da-palha” (Limnornis curvirostris) e “arredio-do-gravatá” (Limnoctites rectirostris).

Arredio-do-gravatá, antigamente conhecido como junqueiro-de-bico-reto. Foto: Raphael Kurz.

 

João-da-palha, antigamente conhecido como junqueiro-de-bico-curvo. Foto: Raphael Kurz

Atualmente sabemos que essas duas espécies de aves são encontradas exclusivamente em áreas úmidas do sul do Brasil, Argentina e Uruguai e vivem em hábitats bem diferentes. A primeira é especialista em banhados de palha-cortadeira e junco, enquanto a segunda é encontrada exclusivamente em manchas de uma espécie de planta popularmente conhecida por gravatá ou caraguatá (gênero Eryngium). A relação de Charles Darwin com essas duas espécies de aves que habitam o sul do Brasil, então, é que foi ele quem as descobriu e deu o estopim para que as duas fossem formalmente reconhecidas por pesquisadores. Mas o mais importante é a mensagem principal que esse ensaio nos deixa: dezenas e dezenas de homens e mulheres se dedicaram durante séculos para que hoje em dia entendamos um pouco melhor a nossa biodiversidade. E, mesmo após todo esse tempo de estudo, ainda estamos longe de desvendar os mistérios das tantas espécies que habitam esse planeta. O caso dessas duas aves é só um singelo exemplo e, como vimos, dependemos do esforço de Darwin, de Gould, de pesquisadores contemporâneos e um intervalo de quase 200 anos para sabermos, basicamente, o nome e o parentesco entre elas!

 

PS: Esse ensaio foi largamente baseado nos artigos científicos “Independent evolution of two Darwinian marsh-dwelling ovenbirds (Furnariidae: Limnornis, Limnoctites) de autoria de OLSON et al. (2005) (disponível em: https://sora.unm.edu/sites/default/files/journals/on/v016n03/p0347-p0360.pdf), “Revisão e atualização da lista das aves do Rio Grande do Sul, Brasil” de autoria de BENCKE et al. (2010) (disponível em: https://www.scielo.br/j/isz/a/Ty6WrwV6LHdPr5t3QfS9n6N/?format=pdf&lang=pt:) e nas crônicas do livro “Um sabiá sujo: a aventura científica sobre a descoberta de uma ave e de um continente” de RODRIGUES (2020).

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